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CPT BAHIA

Pedras no copo não matam a sede de ninguém

A cobiça pelo quartzito ameaça as águas do rio Itapicuru

Por Thomas Bauer* (CPT-Bahia/ H3000) e Paulo Oliveira (Meus Sertões)

As pedreiras instaladas no município de Antônio Gonçalves, no território de identidade Piemonte Norte do Itapicuru, na Bahia, rasgaram clareiras, abrindo enormes feridas na densa vegetação. Essas chagas refletem um branco translúcido, que ofusca os olhos de quem vai ao local com a esperança de ainda admirar as belezas naturais da região.

O desmonte das serras está relacionado à extração de quartzito, rocha dura e resistente, utilizada como revestimento em projetos residenciais e comerciais. A ganância é tanta que as lavras engoliram parte das nascentes do rio Itapicuru e, ao lado dos afluentes, se formaram pilhas de rejeitos. Antônio Gonçalves já foi conhecida como o “oásis do sertão”.

O complexo serrano de Pindobaçu, Antônio Gonçalves, Campo Formoso e Senhor do Bonfim faz parte da Serra de Jacobina. Tem uma extensão de 220 quilômetros, que nunca teve a ver com as imagens estereotipadas do sertão nordestino: terra rachada e pessoas carregando lata d’água na cabeça. O bioma desta região tinha abundância de água cristalina e resquícios de Mata Atlântica.

O acesso às comunidades, a partir do povoado de Carnaíba de Baixo, em Pindobaçu, é precário. Os caminhos de terra batida estão abandonados pela prefeitura. Diariamente, as carretas trafegam transportando blocos enormes, quebrando o calçamento e “bagunçando com tudo”, segundo relato de um morador que pediu para não ser identificado. A situação piora, entre abril e julho, quando até mesmo a garoa transforma o barro em pista escorregadia.

Carreta carregada saindo da comunidade do Mucambo. Foto: Thomas Bauer

 As comunidades tradicionais de Fundo e Fecho de Pasto, que usufruem e protegem áreas de uso comum de pastagem animal, estão instaladas há mais de um século na região. No passado, além da criação de animais, os fecheiros produziam banana, café, frutas, feijão e mandioca, que eram transportadas, assim como a lenha, em lombos de animais, por estreitas trilhas. A agricultura prosperava por conta das nascentes, riachos e rios perenes, que nascem ali e alimentam a Bacia do Itapicuru.

De um tempo para cá, os rios Itapicuru-Açu, Fumaça, Aipim, Paciência, Muzambé, bem como os riachos que percorrem as comunidades, atraíram pessoas estranhas interessadas em minérios.

DEMANDA MUNDIAL

 O quartzito é uma rocha nobre, vendida na Europa como “material exótico”. Atualmente, é a principal tendência da construção civil para ornamentação e revestimento. As principais reservas estão localizadas em Goiás, Minas Gerais, Espírito Santo e no norte da Bahia.

Com elevada dureza, a industrialização do quartzito era um desafio por falta de tecnologia adequada. Os novos maquinários, contendo serras diamantadas, específicas para rochas metamórficas, baratearam o custo da extração. Desse modo, o minério, que mantém o padrão de beleza do mármore, ganha espaço no mercado interno e externo por outra razão, além da estética: a resistência às substâncias e às chuvas ácidas, que costumam danificar acabamentos e pisos.

Segundo o balanço das exportações brasileiras de materiais rochosos naturais, publicado pela Associação Brasileira da Indústria de Rochas Ornamentais (Abirochas) [1] , entre janeiro e maio de 2023, foram comercializadas 703,8 mil toneladas de pedras naturais para diversos países.

O quartzito consta como o quarto colocado no ranking com 55,8 mil toneladas exportadas. O lucro dos exportadores foi de 427 milhões de dólares, o equivalente a 2 bilhões e 100 mil reais. Os principais compradores foram os Estados Unidos, a China e a Itália.

A maior procura no mercado mundial reflete em pequenas localidades do norte baiano. Segundo integrantes do Coletivo das Associações das Comunidades Tradicionais de Fundo e Fecho de Pasto da Lagoa Grande, do Brejão da Grota, de Mucambo, da Lutanda e da Borda da Mata, os moradores sentem os efeitos na pele.

São cerca de dez mineradoras que atuam na região, causando graves danos ambientais. As atividades nas pedreiras ocorrem dia e noite. O barulho das máquinas não deixa ninguém dormir. Desde fevereiro do ano passado, é assustador o desmonte dos morros, o aumento da poluição e o desmatamento para construção de novos acessos e para a implantação da pedreira.

As fotos mostram o avanço da Mineradora Jerusalém Importação e Exportação Ltda entre 30 de abril de 2022 e 18 de outubro deste ano. Foto: Thomas Bauer

Os moradores também denunciam que o acesso às serras está sendo privatizados.

“Se alguém chegar perto, os seguranças nos perguntam o que a gente quer. Eles dizem que ali não é permitida a entrada. Devem ter medo de alguém denunciar irregularidades” – diz Manuel**

Mapa com os perímetros requeridos de quatro mineradoras (ver abaixo) mostra que elas atuam em áreas sobrepostas aos territórios das comunidades tradicionais.

MAPA

O primeiro levantamento dos perímetros das áreas de Fundo e Fecho de Pasto foi realizado nos anos 1990, na gestão do então governador Paulo Souto. Novos georeferenciamentos foram realizados durante as duas gestões do petista Jaques Wagner (2007 a 2014). O mesmo ocorreu nos dois governos de Rui Costa (2015 a 2022), também do PT, atual ministro da Casa Civil. Porém, o Estado até agora não concluiu o processo de regularização de terras e entrega dos títulos para as associações comunitárias.

A demora para a regularização fundiária, somada ao anúncio do prefeito Antônio Gonçalves, Djalma de Freitas Cardoso Neto, o Dudu (PSD), de que mais mineradoras se instalariam na cidade, aumentou a tensão na região. Os integrantes das associações se queixam do descaso do Executivo municipal com o meio ambiente. Eles acrescentam que as empresas se localizam nas áreas onde estão as principais nascentes do rio Itapicuru. E que elas não dão nenhuma contrapartida para mitigar os danos causados.

Outra queixa se refere à suposta conivência da prefeitura com as mineradoras. Recentemente, o agente de saúde e a ambulância que transportava os enfermos da comunidade de Mucambo foi retirada do local , o que esta sendo interpretado como foram de pressão diante das denúncias feitas pelos moradores. A única alternativa passou a ser os carros de linha, que cobram R$ 50 por pessoa por um trajeto de 32 quilômetros até Campo Formoso. Se a viagem for de emergência, o preço sobe para R$ 200.

COMPENSAÇÃO IRRISÓRIA

 Diante do lucro gerado pelos blocos retirados diariamente das serras, chama a atenção a irrisória contribuição obrigatória da Compensação Financeira pela Exploração Mineral (CFEM) pelas empresas. Estabelecida pela Constituição Federal de 1988, a CFEM arrecadada pela Agência Nacional de Mineração (ANM) é o pagamento feito como contraprestação pela utilização econômica dos recursos minerais.

Nos dez primeiros meses deste ano, foram arrecadados R$ 225.532,30,-. Desse total, a prefeitura recebeu 60%, ou seja, dez parcelas de R$ 13.531,93,-. Esse dinheiro é suficiente apenas para pagar o salário de cinco agentes comunitários de saúde ou de um vereador e meio [2].

Outra questão relevante é que para a concessão das licenças que garantem o funcionamento das pedreiras não é exigido o Estudo e o Relatório de Impacto Ambiental (EIA/Rima), o que torna difícil mensurar o efeito negativo no meio ambiente e antever medidas mitigadoras.

Atualmente os responsáveis pela assinatura das licenças expedidas em Antônio Gonçalves são o secretário municipal de Agricultura e presidente do Conselho do Meio Ambiente, Franciel Cardoso do Nascimento, e o engenheiro ambiental e sanitarista Eraldo Oliveira Ribeiro Filho.

Mineração Minas Gerais do Brasil Ltda ao lado do rio Paciência recebeu a licença de operação no dia 8 de fevereiro de 2022 – Foto: Thomas Bauer

 Pela lei complementar n° 140, de 88 de dezembro de 2011, “considera-se órgão ambiental capacitado (…) aquele que possui técnicos próprios ou em consórcio, devidamente habilitados e em número compatível com a demanda das ações administrativas a serem delegadas” [3]. No entanto, não existem informações concretas sobre a composição dessa equipe no município de Antônio Gonçalves.

Apesar de as licenças terem sido expedidas, os moradores de comunidades tradicionais denunciam que a prefeitura não dá informações sobre projetos públicos e privados que tenham consequências para o meio ambiente e à saúde humana, apesar de o coletivo das associações ter encaminhado ofício com esta solicitação no dia 28 de abril do ano passado. As comunidades tradicionais também questionam a não realização de consulta prévia, conforme previsto na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário.

Dudu, o prefeito, não valoriza a transparência para os moradores, mas faz lives favoráveis aos empreendimentos. Em uma delas em resposta a denúncia feita pelas associações comunitárias, ele diz estar em uma das nascentes do rio Itapicuru, mas não informa a localização. Acompanhado de duas pessoas, ele enche com água um copo plástico e, teatralmente, bebe com o intuito de mostrar que está tudo normal na região. Em seguida, joga o copo no mato, como se não se importasse em poluir o local. Ele ainda lava o rosto no que parece ser um braço do rio e termina a apresentação. Um dos funcionários é quem retira o copo da mata.

Ao contrário da live de Dudu, os córregos e riachos que abastecem parte das comunidades mudaram de cor em janeiro desse ano. Desde que começaram as obras para a abertura de novas estradas e a extração de pedras nos topos dos morros, detritos deixaram a água marrom. No início do ano, um surto de diarreia acometeu crianças e adultos.

Riacho poluído na comunidade do Mucambo – Foto: Arquivo da Associação (18/01/2023)

GUARDIÕES DE ÁGUA

O nome Itapicuru vem da língua tupi: “Itapukury” e significa “rio das pedras compridas”. Sua bacia hidrográfica abrange 36.100km², 56 municípios e provê uma população de 1.590.262 habitantes segundo dados da Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf/IBGE, 2020).

Cachoeira ao longo do rio Paciência, afluente do rio Itapicuru – Foto: Thomas Bauer

As águas do Itapicuru abastecem as barragens de Pindobaçu, Aipim, Ponto Novo, Pedras Altas, Leste e o açude Jacurici. Também são levadas por adutora até os municípios de Saúde, Caem e Jacobina e contribuem com 40% da adutora do Sisal, que atende diversos municípios próximos a Feira de Santana. Ao longo do percurso, o rio ainda passa por Tucano, antes de desaguar no mar, no município de Conde.

Para dar mais visibilidade e empoderar as comunidades, o Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Itapicuru (CBHI) realizou a 62° Plenária e uma visita técnica na comunidade do Mucambo, em abril. Segundo Gustavo Hess de Negreiros, na época presidente do Comitê e professor da UNIVASF, há muitas dúvidas sobre o processo de licenciamento, já que foram encontrados rochas sendo extraídas de dentro da nascente.

“Isso demonstra a falta de controle do município em termos de fiscalizar o que está acontecendo dentro do seu território” – diz Negreiros.

 Já o representante do Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema), David Lopes, na época coordenador da Unidade Piemonte da Diamantina, em Senhor do Bonfim, questionado sobre as licenças ambientais, afirmou que o órgão estadual não tinha como interferir nas licenças concedidas pelo município. No entanto, competia ao instituto elaborar um relatório técnico e encaminhar o relatório ao Ministério Público para que o caso fosse analisado.

As denúncias e pedidos de fiscalização encaminhadas após a realização da Plenária, em nome do Comitê, somam-se às queixas protocoladas pelo Coletivo de Associações para o Ministério Público, Inema e outros órgãos competentes. Até agora não houve respostas concretas.

Uma das moradoras lembrou que já houve muita briga em cima da serra. Primeiro, os moradores enfrentaram grileiros e madeireiros, que utilizaram documentos forjados na tentativa de tomar as terras.

“Antigamente lutávamos unidos, mas agora tudo se tornou mais difícil porque existe uma divisão dentro das comunidades” – alertou.

Ela refere à estratégia das mineradoras que oferecem empregos a um grupo, além de promessas de reforma de capelas e poços artesianos para as comunidades. Com isso, os poucos que são admitidos não concordam com a luta pela preservação das serras e das águas.

Já os que defendem as nascentes e serras argumentam que nunca ninguém passou fome antes das pedreiras se instalarem porque sempre houve farta produção agrícola.

“Não dar valor ao bem natural que Deus nos deixou, trocar por uma mixaria, é uma coisa de encabular”, afirma Joaquim**, um dos agricultores que nasceu e se criou na região.

Leito do rio Itapicuru durante a estiagem em agosto de 2016

Os pequenos agricultores questionam porque não avançar no incentivo à preservação, na criação de Áreas de Proteção Ambiental (APAs) e no reconhecimento de que os próprios lavradores são fiscais e produtores de água. O município poderia aplicar recursos diversos em educação, reflorestamento, preservação das nascentes e de córregos, tornando-se referência na preservação de recursos hídricos e garantindo a sobrevivência da população de toda a bacia do rio Itapicuru.

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Notas de pé de página

[1] Informações retiradas da página eletônica: https://abirochas.com.br/noticias/balanco-das-exportacoes-e-importacoes-de- rochas-janeiro-a-maio-de-2023/

[2]  Dados sobre a folha de pagamento de Antônio Gonçalves e dos salários dos funcionários foram obtidos no Portal do Tribunal de Contas dos Municípios do Estado da Bahia. O salário bruto de um vereador, em setembro, era de R$ 8.200, e o de um agente comunitário de saúde, R$ 2.640.

[3] Lei consultada na internet. Clique aqui para acessar.

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 Legenda da foto principal: Impacto causado pela Mineradora Gran Minas Rochas Ornamentais Ltda na serra do município de Antonio Gonçalves – Foto: Thomas Bauer (CPT-BA/H 3000).

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(*) Reportagem feita em parceria com a Comissão Pastoral da Terra (CPT-BA).

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(**) Utilizamos nomes fictícios para identificar alguns moradores por questões de segurança. A pressão das empresas e estratégias para dividir o grupo aumentam a pressão e os conflitos na região.

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