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CPT BAHIA

Um breve pensar o “paraíso” como a realização de desejos revolucionários

Autoria desconhecida

Começo lembrando a antropologia do sec. XIX que estuda as comunidades matriarcais nos diz que estas sociedades não se pareciam com as sociedades patriarcais, nos estudos do antropólogo Johann Bachofen, estas sociedades não conheciam a violência sistemática e nelas não havia lugar de comando, e sim ajuda mutua e ele escavou muitas histórias enterradas para chegar a esta conclusão.

Se observarmos bem, as sociedades matriarcais chegam a ser descritas na Bíblia, com olhar do patriarcado claro, então teremos a descrição de “sociedade de prostitutas”, porque as mulheres não eram propriedade dos homens, não só o homem tinha direito a ter mais de um parceiro, mulheres livres e autônomas foram depreciadas na história do cristianismo. Como Jesus de Nazaré tem um apelo fantástico ao amor, uma prática libertária, ele foi apropriado pelo patriarcado e nós passamos a acreditar que o desejo deve ser sujeitado pelos próprios sujeitos em função dos desejos do opressor, aquele a quem devoto meu tempo e creio que deve me tutelar como salvador.

Vivemos constantemente dentro de uma estratégia de guerra, uma guerra de guerrilhas que coloca a vida em uma condição submissa e escrava, uma condição de servidão a um ser superior, que se fez supremo, com imagem de homem. E esta guerra é vital porque destrói não, a vida, mas, destrói as possibilidades de sermos criadoras, autônomas. E não apenas nós mulheres, mas toda a humanidade, que faz muito, se submete às forças contrarias a tudo que nos libertaria como seres criativos e criadores.


Todo modo de existir nasce de um desejo, criativo, criador e a medida que existe se diferencia uns dos outros. A vida é uma potencial diversidade que imerge no planeta criando e recriando relações entre os seres que nela habitam. A história da criatividade geradora de sociedades e emoções é longa e faz uma pausa para o domínio do Estado a 10 mil anos, desde a sua invenção. Este poder que se diz organizador tem seus princípios no patriarcado e vem dominando as sociedades em volta da terra. Além disso, temos um Deus com poder de determinar e comandar o que acontece com o ser humano. Uma figura construída de “Deus homem com poder absoluto”, onipotente e onipresente, são valores que estão na base do estado e das sociedades patriarcais, e também, do autoritarismo, mas autoritarismo é outra conversa ainda mais complexa. Importa lembrar que as religiões introjetaram estes valores como absolutos.

Deste modo, as forças de conservação se colocam como dominante frente as forças criativas, e nesta luta, nós, mulheres – o feminino – somos aquela que cria vida em cooperação com o masculino, e mesmo assim seguimos como “segundo sexo”, “ser menos capaz” e mediante as guerras de conservação e manutenção dos privilégios para alguns, a gente vem se digladiando. Nos tornamos tipos reativos, divididos em binários: preto/branco, forte/fraco homem/mulher e por aí vai, numa condição tal que estamos separados das nossas potências de agir, de sentir e de pensar plenamente. Temos dificuldade de saber o que mudar e o que conservar, o que é cultura de opressão e cultura criativa/criadora.

 Sempre nos perguntamos, porque vivemos em uma sociedade tão adoecida? Onde o poder, corrompe e domina, e a criatividade é vista como perigo. E me vem uma outra pergunta: Será que não estamos separando a vida dela mesma? Por que construímos barreiras entre nós e nos mesmas e entre nós e as outras? Será que encontraremos a cura?

Quem sabe um dia retomaremos a nossa disposição criativa/criadora, conservaremos as memórias e seguiremos o caminho dos cuidados com a vida, todas elas. Talvez se o caminho seguido for da solidariedade libertária, poderemos pensar na cura das nossas emoções, construindo novas relações possíveis e necessárias será também a cura da terra.


Nós investimos nossas vidas na idealização de uma sociedade, porem temos dificuldade de criar relações novas; novos modos de existir no mundo que tragam com eles a força da renovação da sociedade. Temos dificuldades sim, mas, somos capazes de eleger para nos relações libertárias, alegres, criadoras, independente das falidas instituições da sociedade patriarcal, relações que fortaleçam nosso potencial. Pensar sempre que a terra diversa nos dá possibilidades variadas de ser e estar no mundo e não apenas a espera de um “Messias”, que nos salve, nos tutele de algum modo. Podemos salvar a nos mesmas e as outras se focarmos nosso fazer no potencial criativo e curador.

A cada Maria assassinada, a cada Maria desrespeitada, a cada Maria/menina estuprada, os corações de luto e de luta nos diz ser urgente encontrarmos outro modo de nos relacionarmos, que a unilateralidade patriarcal/Estatal não nos domine, nem o modelo de Estado mínimo dos neoliberais, que é uma tutela mínima para vida em sociedade, é uma tutela máxima para o capital, nem nos amordace o modelo de Estado máximo/patriarcal, que mesmo sendo o máximo para a vida em sociedade ainda assim seguem sendo unilateral.

E nos perguntamos: Qual a maneira de provocar a desconstrução do patriarcado, do preconceito, da misoginia, da aprorofobia, criando as condições necessárias para recriar imaginários coletivos, fazeres comunitários libertos?

Talvez precisemos revisitar as sociedades matriarcais, comunitárias, comunais e vivermos como seres em coexistência sem domínio ou tutela. Onde as diferenças sejam nossa potência criativa para seguir vivendo e cuidando da vida. Buscar nestas sociedades referências de como é possível se organizar sem a lógica da servidão, onde a chefia até existe, mas o comando só exercido em tempos e situações extremas, buscando entender como foram criados mecanismos para barrar os abusos de poder, como aponta o antropólogo Lev Strauss nas suas andanças e leituras dos povos ameríndios. E se alguns grupos se organizaram de outro modo há brecha para rever a organização das sociedades, todas elas sem exceção.

Se vivemos sob condições negativas, das desigualdades sociais e de gênero, precisamos ainda submergir deste mar de negativação, rever valores e regras a que fomos submetidas e nos reencontrar em uma superfície livre. Seria para nós uma espécie de reencontro com nossa potência negada, mas que segue conosco de alguma maneira, sabemos dela quando de todos os processos de dores. Crescemos e fizemos a passagem, elaboramos, transmutamos, seguimos como vasos chineses, quebradas, porém com remendos de ouro.

Estes vasos/corpos, são o centro da potência criadora/criativa, transformadora que foi aprisionada, em leis e regras construídas para tal. Cercearam nossos desejos, podaram nossos corpos e nos prenderam em prisões mentais que se manifesta no nosso modo de existir como escravas de si mesmas, por isso mesmos fáceis de se tornarem escravas de outros se, como em Kant, não trabalhamos e polimos as nossas prisões, acabamos por nos tornar o que tendemos a ser hoje, mulheres, maquinas sociais que executam os trabalhos não remunerados, ou remunerados submissos.

Precisamos descobrir como retomar os desejos libertadores/libertários em nós, como sair da prisão do corpo que é prisão da mente e da alma. Como? Voltamos ao início da nossa conversa sobre a potência que vive em nós, capaz de transpor o acontecimento e não se reduzir a ele, reviver, ressuscitar e trazer consigo outras, que mesmo fascinadas pela libertação, seguem aprisionadas pela lei eterna do patriarcado. Claro que devemos cuidar de rever também nosso “eu autoritário” e subverter esta ordem de poder-domínio e servidão, seguir a formação revolucionária, conhecer nosso sofrimento e como reproduzimos as mesmas atitudes, para que a nossa revolução não seja apenas a troca de donos, e siga com as mesmas relações de poder/domínio.

Somos convidadas a elaborar perguntas sobre a nossa prisão e respostas sobre as possibilidades de libertação. Somos convidadas a não repetir o mesmo caminho que nos prende, as mesmas leis que nos amarram, aprisionam. Caminhar, como dizia Zarastruta, “até encontrar ali nisso que me aconteceu e que me faz lamentar, que me faz ter até remorso ou me sentir culpado, me sentir infeliz, me faz encontrar ali, naquele elemento, algo que era puro desejo em mim. ”

E por fim, porque não pensar o “paraíso” como a realização dos desejos, lugar de liberdades criativas e criadoras de tudo que existe e com potência transformadora do que virá.

Por: Vanúbia Martins – Psicóloga – Comissão Pastoral Terra NE2

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